Aplicar Yama e Niyama à Prática de Âsana
Os yama e niyama são os primeiros dois angas dos ashtângas e são os preceitos éticos estabelecidos no Yoga Sutras de Patanjali. São a base da nossa prática sem qual nenhum progresso espiritual no caminho do yoga pode ser conseguido. Neste artigo, escrevo as minhas percepções de sua aplicação à prática de hatha yoga.
Quando começei a praticar o yoga, ao princípio tive grandes dificuldades em concentrar-me na respiração e também em ligá-la aos movimentos, talvez como muitas pessoas quando começam a praticar. Levei algum tempo a compreender que para praticar temos que ter sempre em mente os yama e niyama se quisermos fazer progressos tanto fisícos como espirituais.
Há algum tempo comprei o livro “Yoga Self-Taught” de André Van Lysebeth, onde este descreve em grande detalhe os benefícios de Surya Namaskar e como este deve ser executado. Numa das indicações, está declarado que ao fim de seis meses de prática, deveria ser possível fazer 40 Surya Namaskaras em 10 minutos. Após muitos anos de prática, eu estava longe de conseguir fazer isto, sempre achando que ’40’ foi um erro tipográfico. Contudo, recentemente soube que este não era o caso e parecia que estava na altura de ver quantos, de facto, conseguia fazer, mas com consciência que seria essencial aplicar os yama à prática, principalmente o de ahimsâ se queria alcançar os seus benefícios. A dado momento tinha consciência que o corpo estava leve e todos os movimentos fluiram de um modo natural, sem esforço.
A nossa prática passa por três fases: a primeira é o desejo consciente de conseguir algo; a segunda é a quietude interna, onde já não nos preocupamos em alcançar o nosso desejo, ou seja, esta é a fase quando o ego se solta do desejo. É na terceira fase que a inteligência profunda do corpo assume o ‘comando’ e os estados de pratyâhâra e dhârâna são alcançados. Aliar os movimentos à respiração é uma forma de entrar nestes estados e com as repetições dos Surya Namaskaras penso que este processo foi facilitado.
Os Yoga-Sûtra foram escritos em Sânscrito e existe um grande número de traduções, em várias línguas, alguns com comentários sobre o sentido das palavras neles contidas. No seu livro, O Ioga, Tara Michael escreve sobre “As oito etapas de Ioga” no capítulo 3, páginas 86 a 118. Baseando-me nas suas palavras e comentários, inclui neste texto uma parte destes comentários referente a cada um dos yamas e niyamas. Em seguida tentarei mostrar como os devemos aplicar à prática do âsana, com base na minha própria experiência de praticar e estudar o yoga.
Yama (refreamentos)
“Os «refreamentos» (yama) palavra que deriva de uma raíz YAM, que significa refrear, domar, dominar, referem-se ao domínio dos impulsos naturais inerentes a todos os seres vivos, comuns ao homem e ao animal”.[1]
Os yama são o código de ética pelo qual devemos guiar a nossa vida para conseguirmos viver em paz e harmonia com tudo e todos que nos rodeiam; também os devemos aplicar à nossa prática diária de âsana com o objectivo de atingir o mesmo sentido de paz e harmonia e para evitar entrarmos em conflito com nós próprios. Procuramos segui-los, voluntariamente e com alegria, sentindo como a sua força positiva nos traz a autodisciplina que nos leva aos objectivos, sendo a razão pela qual praticamos o yoga. Os yama complementam-se e não conseguimos realizar um sem realizar os outros.
Ahimsâ (não violência):
“Não querer infligir nenhum mal a nenhum ser vivo.
Esta regra implica não só a abstenção de assassínios ou actos de violência, como ainda de qualquer acto nocivo, em pensamentos, palavras ou actos”.[2]
Ahimsâ é o alicerce da prática de yoga e é também o yama no qual todos os outros têm a sua raíz. Na prática dos âsana, procuramos não forçar o corpo para além dos seus limites. Tornamo-nos violentos com nós próprios quando não aceitamos esses limites, podemos até causar lesões que levam tempo a sarar. Acabamos por limitar o corpo em vez de o deixar beneficiar dos âsana e ao limitá-lo, ficamos impossibilitados de sentir os seus verdadeiros efeitos. O desconforto de forçar o corpo causará perturbações na mente, já não iremos conseguir mantermo-nos no momento, desligados do exterior, nem de manter os angas de pratyâhâra e dhârâna. No momento que começamos a aplicar os conceitos do ahimsâ, os outros yama seguirão naturalmente, sem aparente esforço da nossa parte.
Satya (verdade):
“Não se afastar da verdade.
Obrigação não só para com outrem, mas também para com nós mesmos: fazer corresponder à verdade as nossas palavras e os nossos pensamentos.”[3]
No âsana, satya quer dizer aceitar o corpo e os seus limites tal como estão. Mantemo-nos abertos à verdade sobre nós próprios para aprender a sentir o corpo e aceitar as mensagens que nos envia. Está ligado ao primeiro yama, o de ahimsâ, não-violência, porque se não aceitarmos a verdade sobre nós próprios, entramos num estado de autoviolência, negando a possibilidade de beneficiar dos resultados duma correcta prática de yoga.
Asteya (não roubar):
“Não se apoderar ilegalmente de nada que vos não pertença.
Esta obrigação inclui a abstenção do roubo, e também da cobiça, ainda que sob a forma do desejo. Tudo o que um homem possui pertence-lhe porque o ganhou, talvez numa vida passada, e ninguém tem o direito de lho tirar. Não se pode tomar aquilo que não foi dado, aquilo que não foi obtido por meios justos ou aquilo a que se não tem direito, por estatuto ou função. Este refreamento permite-lhe manter a sua próprio dignidade.”[4]
Asteya quer dizer que devemos ter o cuidado de não roubar a nós próprios durante o âsana devido aos desejos que nos levam a querer conquistá-lo a todo o custo. A tentativa de o conquistar forçosamente gera a possiblidade de criar lesões. Também nos roubamos da possiblidade de ficar no momento e assim nunca teremos a possibilidade de experimentar as consequências de praticar yoga.
Brahmacarya (continência):
“A continência.
O sentido da palavra «brahmacarya» é «caminhar com brahman», «viver com o sagrado», e esta palavra designava o período da vida do brâmane durante o qual este se consagrava exclusivamente ao estudo dos Veda, aos pés dum mestre. A castidade era uma das disciplinas exigidas ao estudioso brâmane, equiparando-se ao controlo que tinha de exercer sobre todos os outros órgãos de sensação e de acção.”[5]
No âsana isto quer dizer que temos que nos conter contra os excessos, mantendo-nos no momento, com a nossa atenção voltada para toda a acção do âsana e os seus efeitos no corpo. Procuramos não ultrapassar as nossas capacidades físicas, mantendo-nos atentos ao momento em que podemos aprofundar mais o âsana tentando perceber quando temos que sair para não nos cansar e diminuir os seus efeitos. Controlamos todo o movimento, sem infligir qualquer exigência que o corpo não consiga executar.
Aparigraha (desapego):
“Não ser possessivo.
Este refreamento tem por finalidade pôr termo à procura de objectos que proporcionem gozo e poder. O homem tem tendência para acumular indefinidamente os bens materiais, e o tempo e a energia desperdiçados na aquisição e na preservação de bens supérfluos são subtraídos à prática ióguica”.[6]
Não devemos tentar possuir os objectivos nem os resultados da prática, senão invalidamos os efeitos conseguidos e deixamos o ego tomar conta de toda a acção. Devemos começar cada âsana como se fosse a primeira vez que o executamos, deixando para trás tudo o que temos conseguido ou sentido em qualquer outro momento.
Niyama (Observâncias)
“As «observâncias» (niyama) constituem a segunda etapa do Ioga. Enquanto que os yama eram de carácter negativo e incidiam principalmente no aspecto da harmonização das relações do homem com a sociedade humana e o mundo dos seres vivos em geral, os niyama são de carácter positivo e construtivo visando a organização da vida interior, pessoal. Não basta impor limites ao comportamento exterior, é também necessário reestruturar a personalidade profunda por intermédio de cinco «observâncias», que devem ser praticadas com regularidade, dia após dia.”[7]
Quando seguimos e interiorizamos os yama, conseguiremos alcançar a harmonia entre a respiração e o movimento que leva ao apaziguamento da mente. Isto deixar-nos-á alcançar o segundo anga, os niyama que são como uma extensão dos yama, e a sua aplicação ajuda-nos a aprofundar a nossa prática com mais consciência.
Çauca (purificação):
“A purificação.
Aquele que aspira a ser um yogin tem de observar preceitos de higiene corporal externa, mas também de proceder à purificação interior dos seus órgãos, regulando correctamente a sua maneira de viver. A força, a clareza e a subtileza do pensamento dependem em grande medida da qualidade do corpo, pelo que o yogin precisa de ter um corpo harmonioso e puro, que seja um instrumento simultaneamente sensível e sólido.”[8]
O correcto desempenho do âsana tem um efeito de limpeza interna no corpo através dos alongamentos e as compressões alternados dos músculos do abdómen que ajudam na eliminação das toxinas que se tenham acumulado. Também no âsana devemos procurar manter a mente num estado de perfeita consciência, atentos para percebermos a diferença entre forçar o corpo ou desafiá-lo. Isto é essencial para não nos lesionarmos e também para não perdermos a capacidade de fluir com o momento deixando de sentir os benefícios do âsana.
Samtosha (contentamento):
“O contentamento.
O contentamento é a capacidade que o yogin tem de extrair sempre uma plenitude de alegria de tudo aquilo que tem e que é, sem que nenhuma provação exterior ou dificuldade interior possa afectar a sua serenidade.”[9]
O contentamento é também uma expressão da renúncia. Devemos procurar entregarmo-nos com dedicação à nossa prática, sem estar à espera de conseguir os nossos objectivos. Devemo-nos contentar tanto com o que não conseguimos fazer como com aquilo que fazemos com êxito, e assim será possível mantermos a nossa serenidade sem qualquer esforço.
Tapas (esforço sobre si):
“O esforço sobre si mesmo.
Não é possível praticar o Ioga sem a determinação de envidar todos os esforços, de mobilizar toda a energia e atenção para atingir a finalidade visada.”[10]
Temos que manter a nossa prática com dedicação, perserverança e paciência respeitando os princípios que temos aprendido como estudantes/praticantes de yoga. A prática de tapas é algo mais subtil do que o nome pode parecer indicar. O esforço que aplicamos sobre nós mesmos durante a prática de âsana e prânâyama, não quer dizer um esforço prejudicial, mas é feito com consciência; mantemo-nos cientes das nossas limitações e aprendemos a diferença entre desafiar e forçar demasiado. O primeiro leva-nos à meta de yoga, mas o segundo pode conduzir à lesão. Através de manter uma prática regular, sentiremos a necessidade de continuar o esforço sobre nós próprios para aprofundar ainda mais o nosso conhecimento acerca de nós próprios e também de todos os aspectos de yoga.
Svâdhyâya (estudo)
“O estudo.
Para o yogin, o svâdhyâya é o estudo dos textos tradicionais relativos à Libertação. Todos os tratados que ensinam os diferentes aspectos do Ioga lhe devem ser familiares, como na aprendizagem de qualquer outra ciência.”[11]
Para aprendermos um âsana, temos primeiro que procurar quem nos ensine a executá-lo correctamente e com segurança. Para executar o âsana, procuramos encontrar a posição e o alinhamento correcto ao observar e ouvir o que nos está a ser ensinado. Depois de o aprender, não precisaremos da ajuda exterior, e através da interiorização iniciamos o auto-estudo. Como o estado do corpo e a mente estão em constante mudança, toda a aprendizagem se torna nova em cada momento, tornando o estudo do âsana, do corpo e mente necessário a cada execução.
Içvara-pranidhana (consagração de Deus)
“A consagração de Deus.
A última das «observâncias» é Içvara-pranidhana, « a oferenda de todas as suas acções a Deus», literalmente a acção de depor (nidhana) toda a acção diante (pra) do Senhor (Içvara), de a colocar a seus pés.”[12]
No âsana, a oferenda é vista como sendo toda a nossa prática, começando com a pequena saudação que fazemos no início. É o acto de entrega total a todo o processo da nossa prática. Se conseguirmos entregar-nos, a nossa prática desenvolver-se-á naturalmente sem esforço e sem ego. No seu livro “Yoga: The Spirit and Practice of Moving Into Stillness”, Erich Schiffmann oferece-nos as seguintes palavras para explicar a aplicação deste niyama na nossa prática:
“……a melhor maneira de nos preparar mentalmente para a prática correcta de yoga é de pensar nela como se fosse o nosso tempo de comunhão e renovação. Pensem no corpo como sendo o templo ou lar de Deus individualizado, Consciência em expressção específica, e de cada âsana como uma oração. Aprenda a fazer cada postura como se fosse o centro de toda a vida e de todas as outras posturas. Cada postura que fizermos automaticamente sugerirá todo o universo do qual é uma parte. Não há nada que exista em isolamento. Os mestres antigos sabiam isto perfeitamente. Este é o segredo de yoga.”[13]
Tal como outros recém chegados ao yoga, tinha o desejo de conseguir progressos tanto físicos como espirituais. Mas agora percebo que estes desejos que todos nós temos, ao longo do tempo começam a ganhar outra dimensão, uma maturidade que nos deixa compreender que nada devemos desejar e nem temos objectivos para atingir. Simplesmente temos que nos entregar a todo o processo que o yoga nos traz para nos mantermos no momento. Com o tempo, vislumbraremos a nossa verdadeira natureza. Se conseguirmos entregar-nos, a nossa prática desenvolver-se-á naturalmente, sem esforço e sem ego.
Hoje, também percebo que nos yama e niyama, Patanjali deu-nos as ferramentas para conseguirmos praticar os âsana e prânâyama com consciência e segurança. Ao manter o uso correcto destas ferramentas, cada estudante/praticante fará com que o yoga nasça dentro dele, renovado a cada momento, conseguindo a síntese de corpo e mente, com a transformação do eu como resultado.
[1] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.86
[2] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.88
[3] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.92
[4] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.95
[5] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.95
[6] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.96
[7] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.96
[8] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.97
[9] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.99
[10] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.100
[11] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.100
[12] MICHAEL, Tara; O Ioga, Paris 1975, Editorial Presença, Lda., p.101
[13] SCHIFFMANN, Erich; Yoga: The Spirit and Practice of Moving Into Stillness; New York, Pocket Books, 1996; p46
É UM APRIMORAMENTO DO CORPO E DO ESPÍRITO!
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E estar em harmonia com mente , corpo e espirito. Para ter equilibrio no dia a dia na vida havera necessidade de prática diaria.Essa disciplina nos leva aos nossos objetivos de estarmos satisfeitos com alegria de viver em paz.
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Muito obrigado por compartilhar.
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Conteúdo bem elaborado! Bibliografias de respeito…
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